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Casas de Montar: Pré-fabricação


         Como num quebra-cabeças, peças são unidas para dar forma a espaços. A pré-fabricação, que consiste num processo racionalizado, torna o canteiro de obras organizado, limpo e rápido, onde as peças que chegam, já prontas, devem ser encaixadas. Produto da Revolução Industrial, esse processo é ainda pouco explorado, principalmente na construção de casas, sendo muito comum em nosso país na construção de pontes, rodovias e galpões. Será mesmo que peças de concreto e metal poderiam dar forma a uma residência?


Casa Gerassi (1991)
[Paulo Mendes de Rocha]


         Em meio a casas anacrônicas no bairro Alto de Pinheiros, São Paulo, ergue-se do chão essa residência projetada pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha para o engenheiro Antonio Gerassi e sua família.
         De fato, Paulo já vinha ensaiando a pré-fabricação em casas como desejo de uma arquitetura racional desde os anos 1960. Isso fica claro, principalmente, nos projetos das casas gêmeas do Butantã (1966), e na Casa Masetti (1970), onde o arquiteto utiliza o concreto armado aparente e "monta" as residências com poucos elementos (quatro pilares, vigas e lajes), quase como infraestruturas capazes de se inserir na malha urbana e satisfazer as necessidades humanas. Os elementos construtivos, porém, foram moldados in loco, embora as casas emulem o desejo da racionalização.
         Apenas no final dos anos 1980, a pré-fabricação pode finalmente ser utilizada num projeto seu, num momento em que o arquiteto, cliente e indústria trabalharam juntos.



         Seis pilares de concreto elevam um pavilhão retangular do chão, liberando a área térrea total do terreno para lazer. Nesse pavimento, apenas duas alvenarias interrompem a vista da calçada para o fundo do lote. Essas paredes que se elevam sem encostar no paralelepípedo suspenso, dizem respeito à área de apoio à piscina e à emblemática escada de acesso.


         Diferente de muitas escadas que o arquiteto projetou anteriormente, a da Casa Gerassi não está fora dos perímetros de projeção do grande volume suspenso, mas dentro dele, abaixo do vazio. A superfície lisa da face inferior da escada cria uma sensação de desprendimento: a escada parece ser levadiça, aberta e encontrando essa espera, como um píer que aguarda o navio chegar. Uma terceira alvenaria, pintada de cor laranja, foi adicionada mais tarde.



         O teto exibe o desenho das vigas e lajes protendidas. Uma grelha filtra a luz recebida na cobertura do edifício, um gesto bonito, já que a luz aqui é a mesma luz que atravessa o espaço interno da casa, assim como o vento, que utilizando-se da ventilação cruzada, refresca e propicia a constante troca de ar entre interior e exterior.



         O programa se organiza num único piso. Sem corredores, a cozinha, lavanderia e suítes se colocam em torno de um living central. Aqui, como em outros projetos do arquiteto, um bonito ladrilho hidráulico cobre toda a superfície daquilo que está elevado do chão, como que para marcar a uniformidade dos níveis daquilo que ali está construído.






         O concreto protendido das peças pré-moldadas possibilita grandes vãos, de maneira que não existem pilares dentro da casa: o pavilhão possibilita um arranjo livre do layout. As aberturas, posicionadas de maneira funcional, variam de janelas em fita nos quartos, para grandes panos de vidro na sala.







         As aberturas zenitais cuidam da iluminação estratégica de certos pontos. A cobertura com laje impermeabilizada, na altura das copas das árvores, exibe a caixa d'água apoiada em um dos seis pilares.


         Porém, nenhum outro elemento da casa é mais curioso que sua piscina quase triangular: com laterais de concreto, o chão tem o mesmo revestimento de ladrilho hidráulico da casa. É como se a piscina fosse um cômodo da casa inundado de água.



         As obras para construção da casa começaram numa quinta-feira e terminaram no sábado. Isso gerou protestos dos vizinhos que acharam tratar-se de uma obra comercial (o bairro é estritamente residencial). Isso marca de maneira singular o preconceito que a pré-fabricação sofre. "Como uma casa pode ser erguida em três dias? Isso é um absurdo!".
         A Casa Gerassi é uma afirmação. A industrialização, racionalização, padronização, podem sim gerar uma arquitetura capaz de se destacar em meio à mesmice.

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Casa R.R. (2007)
[Andrade Morettin]


         Essa casa na praia de Itamambuca, Ubatuba-SP, utiliza materiais industrializados incomuns na construção de residências. Telhas metálicas galvanizadas tipo sanduíche chamam a atenção na fachada, formando uma espécie de pórtico, uma caixa, fechada nos outros dois lados por telas de fibra de vidro do tipo mosquiteiro encapadas com PVC. Esses fechamentos exóticos propiciam uma transparência que revela no interior uma segunda caixa, recuada dos perímetros internos em três pontos, fechada por painéis de OSB perfurados.





         É somente quando o contraste entre os materiais são colocados em segundo plano que percebemos a esbelta estrutura de madeira, também industrializada em padrão de vãos 4X5 metros. Os pisos, também em madeira, variam de um deque na varanda e tábuas nos demais ambientes.
         Isso mesmo, uma casa brasileira sem concreto aparente. Mesmo nos banheiros, o piso é um revestimento de manta pré-fabricada butílica sobre madeira.




         O escritório de Vinícius Andrade e Marcelo Morettin vem a anos desenvolvendo projetos ligados à pré-fabricação. Desde projetos grandes, como a proposta vencedora do novo Museu do Instituto Moreira Sales, ou o singular edifício de apartamentos na Rua Fidalga, até projetos de menor escala, como a Casa P.A. em Carapicuíba, cujos conceitos apresentaram idéias que se desenvolveram no projeto dessa casa em Ubatuba.

         No pavimento térreo estão living e cozinha, que podem ser integrados a uma varanda por portas de correr, lavanderia e uma suíte. Somente a fachada da varanda possibilita que as telas mosquiteiros se abram totalmente (numa altura de pé direito duplo). Na fachada oposta, apenas uma das telas se abre, configurando a entrada principal da residência por uma pequena escada, já que o edifício encontra-se elevado do chão em alguns centímetros.


         Uma escada liga as duas caixas. No pavimento superior, mostrado na planta acima, dois quartos compartilham um banheiro. Ambos possuem uma espécie de varanda interna, iluminada por janelas que fazem um rasgo nas fachadas de telha metálica e aberturas zenitais.







         A simplicidade com que os materiais são unidos para elaborar os espaços da Casa R.R. é o grande mérito desse projeto. Esse edifício usa da materialidade e de seus arranjos para criar vazio, um vazio onde o inesperado acontece, não há uma vivência proposta. Deve-se viver para descobri-la.

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Casa Big Dig (2008)
[Single Speed Design]


         Numa primeira vista, essa casa na cidade norte-americana de Lexington, Massachusetts, pode parecer apenas mais um projeto "modernista". Mas seu significado vai muito além do fato de ter sido construída com elementos pré-fabricados.

Imagem acima: a cidade de Boston em 2003.
Imagem abaixo: o mesmo local, em 2007.

         O que as imagens acima tem a ver com tudo? Elas mostram os resultados de uma operação conhecida como Big Dig, ou "grande escavação", como preferirem. A Big Dig é uma obra gigantesca de escavação e reorganização do trânsito da cidade de Boston, que na virada do século chegou a um ponto de total saturação de suas redes viárias. A solução, como o próprio nome diz, foi cavar e construir túneis, liberando o solo e redistribuindo o tráfego de veículos da cidade.
         Milhares de toneladas dos restos das rodovias, pontes e túneis que antes davam forma à infraestrutura urbana seriam reciclados ou jogados fora.
         É aí que entram os engenheiros e arquitetos do escritório Single Speed Design e decidem projetar uma casa utilizando lajes, vigas e pilares pré-fabricados que antes faziam parte do sistema viário de Boston.
         Sim, a Casa Big Dig foi construída com peças pré-fabricas reutilizadas.


         A idéia foi não apenas construir a residência, mas deixar o peculiar sistema construtivo aparente. E não somente no exterior. As vigas e pilares metálicos que formam os dois pórticos principais foram montados em poucas horas para receber as lajes de concreto. Por conta desses materiais terem sido projetados e dimensionados para aguentarem uma grande carga (eram rodovias, pontes e túneis afinal), tornaram-se peças extremamente pré-tencionadas, com concreto e metal robustos, e que engrandecem em muito a resistência aos esforços de tração e compressão da estrutura em comparação à de uma residência comum.


         O tempo da obra e gastos foram diminuídos drasticamente, com a vantagem de poder usufruir de uma estrutura poderosa, capaz de suportar a carga de terraços jardim e criar grandes vãos.



         De dentro da casa é possível observar a imponente estrutura aparente, e até mesmo as marcas do tempo em que foi utilizada com seu propósito original. É possível ler a marcação nas lajes de concreto e vigas metálicas, e até mesmo identificar de que pedaço da rodovia faziam parte.

O vão possibilita uma cozinha enorme, onde há espaço até para uma mesa de bilhar.





         A casa possuí três pavimentos principais, embora esteja dividida em níveis intermediários. A casa é grande, com esse primeiro pavimento servindo principalmente à parte social do programa, com uma grande sala para festas, sala de jantar e cozinha. Como na Casa Gerassi, a estrutura funciona como um exoesqueleto, excluindo a necessidade de pilares dentro da casa, o que resulta em grande liberdade espacial.


         No pavimento superior, cômodos mais reclusos, a divisão comum, quartos, biblioteca e escritório. O que rouba a cena no entanto, e talvez seja a maior beleza dessa casa, é o jardim japonês na cobertura do volume da garagem. Uma escada externa sobe até o terceiro pavimento para mais um terraço jardim.


         Imagine os benefícios que construir com materiais pré-fabricados reutilizados poderiam gerar?
         Uma rodovia, ponte, túnel se vai. Uma escola, hospital, habitação nasce. Milhões em dinheiro economizados.


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         Esses três exemplos de projetos mostram que é possível pensar na pré-fabricação como sistema capaz de criar muito mais que Construções...Arquitetura.
         Esses não são os únicos projetos do tipo, e o recorte foi cruel (é quase um crime não ter citado João Filgueiras Lima até agora). O uso de tal sistema racionalizado nesses projetos de residências, e em outros, abre as portas de um território ainda pouquíssimo explorado, onde as possibilidades são enormes.
         Que bonito é o gesto de içar grandes monolitos e encaixa-los, formando grandes pórticos. Podemos quase dizer que é algo transcendental, ancestral.


Imagens e mais informações:
> Casa Gerassi
> Casa R.R.
> Casa Big Dig
> Boston antes e depois
> Stonehenge

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