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O legado silencioso de heróis [05]: Francisco Segnini, Joaquim Barretto e a Residência Anderson Gattás


O intuito dessa série de postagens, desde que começou a três anos atrás, sempre foi o de divulgar a obra de arquitetos, cujo reconhecimento não seja devidamente proporcional à qualidade que se encontra em sua produção. Principalmente, arquitetos das gerações das décadas de 1950/1960/1970, cuja obra nunca tenha sido publicada, ou publicada de maneira escassa.
Como explicamos a três anos atrás, a pomposa palavra "heróis", que ilustra o título da série, deve-se ao fato desses arquitetos terem projetado arquiteturas que desafiavam o status quo da época, terem proposto maneiras diferentes de construir, de habitar e de se relacionar no espaço íntimo e público.
Esse espaço questionado, resultou em projetos ainda hoje incríveis, principalmente no campo da habitação unifamiliar, onde as experiências mais radicais se deram. Não por coincidência, até o presente momento, todas as postagens da série foram análises de residências, e no texto a seguir, isso não será diferente.

A dupla apresentada nesse post tem, de longe, a obra mais interessante e menos conhecida até agora. Seus projetos estão espalhados pela cidade de São Paulo, onde residiam, mas também marcam fortemente o panorama de arquitetura moderna no interior do estado de São Paulo, principalmente em Araraquara e Ribeirão Preto. Os autores desse blog entraram em contato com a obra de Francisco Segnini e Joaquim Barretto justamente pelo destaque que sua obra tem na cidade de Ribeirão Preto, ainda que seja um destaque tímido: poucos são os que conhecem essa produção, nunca antes publicada, e pouquíssimo explorada.

Francisco Segnini Junior se formou em 1965 na FAUUSP. Joaquim Cláudio Barretto se formou em 1967 no Mackenzie. Colegas desde estudantes, ambos originários de Araraquara, encontraram afinidade projetual desde cedo, projetando juntos sua primeira obra em 1966 (1). Sua produção é extensa, principalmente de casas, sendo sua obra mais conhecida, e a única publicada em livro (2), a Igreja da Cruz Torta (Paróquia Nossa Senhora Mãe do Salvador), projeto de 1972, localizada no bairro Alto de Pinheiros, em São Paulo. A parceria durou até o final da década de 1970, quando se separaram e seguiram com escritórios próprios. Foi durante esses mais de 15 anos de escritório juntos, que projetaram um de seus projetos mais impressionantes: a Residência Anderson Gattás, em Ribeirão Preto.

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Post 05:

Residência Anderson Gattás (1970-1972)
(Francisco Segnini e Joaquim Barretto)


Concluída no início da década de 1970, essa casa para uma jovem família, constituída por um casal e três filhos pequenos, se destaca ainda hoje no bairro Alto da Boa Vista (3), em Ribeirão Preto. O lote estreito (12x28), nas palavras do arquiteto Francisco Segnini, não apresentava "nenhuma perspectiva visual interessante" (4). A estratégia adotada foi a de concentrar o extenso programa em duas empenas laterais cegas, que por sua vez sustentam uma cobertura inclinada de duas águas. Ao contrario das empenas cegas de concreto aparente usadas em São Paulo naqueles anos, Segnini e Barretto optaram por colocar em evidência a qualidade e a mão de obra de outro material, tão presente na cidade na época: o tijolo cerâmico.


A linguagem "brutalista" (5) comparece fortemente no projeto, sendo possível analisar visualmente a maneira como a casa se sustenta já do lado de fora, da rua. Apenas a caixa d'água se estrutura através de pilares (surgindo da cobertura inclinada, tendo destaque na fachada), o corpo total do edifício se estrutura nas empenas laterais. E é justamente esse um dos maiores destaques nesse projeto: a casa não se sustenta através de pilares. Isso fica claro ao se observar os desenhos do corte e elevação (imagem acima). Uma grande cobertura de concreto aparente pousa em duas empenas de alvenaria estrutural, travadas através de grandes vigas de concreto. Essa ausência de pilares, no vão total da residência, fica clara ao se analisar a altura das vigas, vencendo grandes vãos.

Fachada posterior da casa. Grandes vigas de concreto

Esse invólucro das alvenarias estruturais e cobertura, gera um grande vazio interno. Ao invés de seccionar esse vazio em dois pavimentos, o pavimento superior é tratado como uma espécie de mezanino, valorizando e integrando os espaços da casa, e maximizando a iluminação interna, resolvida principalmente pela alta janela e as clarabóias (uma vez que apenas as fachadas frontal e posterior possuem aberturas).


Além do concreto e tijolos aparentes, as cores tem papel fundamental na estética da residência:
> Superfícies de bancadas e guarda-corpos: azul
> Serralheria: vermelho
> Madeira: amarelo

Essa racionalização também se faz presente nas aberturas. A influência da vanguarda de São Paulo é evidente, principalmente da obra do arquiteto Joaquim Guedes e suas experimentações com aberturas, bastante influenciadas por Le Corbusier e Alvar Aalto. O esquema de abertura bi-partida organiza a ventilação e iluminação dos ambientes internos. Todos os vidros das janelas são fixos, sendo a ventilação garantida através de venezianas de madeira (6).


Os volumes triangulares que se destacam, como espécies de bay-windows, são utilizados como estratégia de expansão da área interna. Esses recortes, vistos em planta, mostram a generalidade com que os arquitetos aproveitam e organizam o espaço, sendo talvez o maior exemplo disso os volumes triangulares que se destacam da sala de jantar e do patamar de uma das escadas que leva ao mezanino da sala íntima.




As escadas são um espetáculo à parte. No panorama da arquitetura paulista, na época, era muito comum o uso de mais de uma escada nas residências. Exemplos como da Residência Roberto Millan, projeto de 1960 do arquiteto Carlos Millan, são imprescindíveis para entender o que estamos indicando. Na Residência Anderson Gattaz, assim como em outros projetos, Segnini e Barretto separam a circulação social e de serviço em duas escadas distintas. A escada principal, visível já no hall de entrada da casa, se divide em dois lances (três se contarmos o mezanino da sala íntima como um grande patamar dessa escada), com guarda corpos também de concreto aparente.


A escada de serviço, que liga a sala íntima à lavanderia e cozinha (separadas do restante da casa no térreo por um jardim) é também em concreto, no entanto helicoidal. Seu desenho denuncia: os degraus foram moldados in loco e encaixados em um pilar.




A espacialidade da casa, no entanto, tem um preço. Em depoimento aos autores, a moradora original da residência confessou: o grande vazio que organiza os espaços, torna a casa um espaço comunitário. A intimidade é colocada em jogo pela generosidade de integração dos ambientes.



Detalhe do contra-peso utilizado no portão basculante do abrigo de autos

A Residência Anderson Gattás é um poderoso exemplo da arquitetura paulista. Não por acaso, recebeu menção honrosa na categoria de habitação unifamiliar na premiação do IAB de 1974, chegando a ser publicada na Revista Casa e Decoração de 1976.
Mesmo que tenha sido esquecida pela maioria do arquitetos, a casa sempre fará parte fundamental do quadro da arquitetura moderna de Ribeirão Preto, inspirando futuras gerações que se atrevam a buscar sua referência (7).




Referências


> GADELHA, Julio Barretto. O Exercício da Criação: Arq. Joaquim Barretto. 2011. Dissertação (Mestrado) - FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011

> SEGNINI JUNIOR, Francisco. Racionalismo, Arquitetura e Capitalismo. 1986. Dissertação (Mestrado) - FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986

Todas as fotografias são dos autores. Os desenhos pertencem ao acervo do arquiteto Joaquim Barretto, e foram retirados da dissertação de Julio Barretto Gadelha (referência acima). 



(1) A Residência Maurício Marcondes, uma casa com abóbadas catalãs e concreto aparente, em 
Ribeirão Preto. À época do projeto, Barretto ainda era estudante.

(2) XAVIER, Alberto; LEMOS, Carlos; CORONA, Eduardo. 1983. Arquitetura moderna paulistana. São Paulo: Editora Pini.

(3) O Alto da Boa Vista, loteamento projetado e construído a partir da década de 1950 em Ribeirão Preto, estritamente residencial. A região possuí muitos projetos de casas unifamiliares projetadas por arquitetos.


(4) Página 59 da dissertação de mestrado de Francisco Segnini, referência acima.


(5) Citamos a Residência Anderson Gattaz em nosso post de 2013, onde inserimos reflexões sobre o Brutalismo como postura projetual. Para ler, clique aqui.


(6) O artifício da bi-partição das aberturas é bastante utilizada pelos arquitetos em outras obras, como na já citada Igreja da Cruz Torta, e na Residência Manildo Fávero. Em depoimento aos autores, Francisco Segnini confirmou a influência de Alvar Aalto, via Joaquim Guedes.


(7) Um bom exemplo, é do TFG do arquiteto Valter Félix, arquivado na biblioteca da Faculdade Moura Lacerda.

FÉLIX, Valter Luis Secco. Breve quadro da arquitetura residencial do período de 1954 - 1985 em Ribeirão Preto. Trabalho final de graduação - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Centro Universitário Moura Lacerda, Ribeirão Preto, 1987.

Não deixe de ler também os demais posts dessa série, que pretende divulgar a excelente arquitetura esquecida ou pouco divulgada de nosso país. Para isso, basta clicar nos links abaixo:

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