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A importância de ousar (e a casa com dois pilares)


"A árvore está virtualmente presente na semente".
Pierre Lévy


A importância de ousar

         Uma solução pensada e ensaiada antes, por meio de representações, com o objetivo que mensurar todas as questões envolvidas no ato de construir. Talvez mais importante que executar um edifício em nosso mundo físico, seja o processo projetual implícito na obra. Ainda mais curioso que um edifício acabado, é o estudo e processo que determinou tal "fim", as estratégias adotadas na solução do programa de necessidades, prioridades, demandas.
         Quando falamos no projeto de uma casa, tal desenvolvimento é ainda mais interessante, resultando nos mais variados tipos de formas e arranjos, reflexo da subjetividade do futuro morador. É importante lembrar que não existe um bom projeto sem um bom cliente, aberto (assim como os arquitetos) à possibilidade de explorar cada solução que melhor se aplique às necessidades por ele determinadas.
         O resultante de tais diálogos são croquis, diagramas, gráficos, maquetes e modelos tridimensionais renderizados, desenvolvidos em softwares que simulam a realidade cada vez melhor.
         A liberdade que o arquiteto encontra hoje para ousar, tem dois extremos: se por um lado isso significa um entendimento maior de estruturas complexas e como transpor tais elementos do virtual para o real (Zaha Hadid, Frank Gehry e Daniel Libeskind vieram à cabeça), por outro lado possibilita também um "enxugamento" e simplificação da estrutura até sua essência. Talvez um exemplo que transita entre as duas ousadias seja a obra de Richard Serra, que não é arquiteto, mas pensa arquitetura mais do que muitos arquitetos contemporâneos.

         Tais ousadias não eram impossíveis antes (basta pensar na revolução que a cúpula da Catedral Santa Maria del Fiore de Filippo Brunelleschi causou em 1436), mas o avanço das ferramentas de simulação tridimensional e sua simples interface causaram uma generalização de seus instrumentos. Não são necessárias mais do que meia dúzia de aulas para se entender como um software desses funciona, e não é preciso ser um arquiteto ou estudante de arquitetura para "construir" uma casa utilizando tais ferramentas (um exemplo antigo é o jogo de computador The Sims).
         Claro, nem todos os resultados podem ser chamados de "arquitetura" (ao menos não sob certos aspectos, vide Richard Serra novamente). No entanto, a ousadia se faz importante, nem tanto pelas formas malucas e impossíveis de serem executadas no plano real (melhor deixar isso para os video games), mas pelas formas e espacialidades que podem ser simuladas, antes de se construir, ou mesmo sem nunca vir a se construir.
         A modelagem 3D pode construir a obra no virtual, nos dando percepção similar à real de sua volumetria e relação com o terreno. Obras que antes só ficavam no papel, maquete "física" ou na imaginação, podem agora existir virtualmente. Podemos caminhar por elas, atravessar seus espaços e entender seus motivos, seus acertos e erros.
         É importante ousar, pelo simples fato de que podemos errar no virtual antes de falhar no real.


A casa com dois pilares

Casa em Mangabeiras, Belo Horizonte (2011-2012)
-grupoSP-


         Mangabeiras é um bairro residencial em BH, conhecido por sua topografia. A proposta do escritório de arquitetura grupoSP para essa residência, teria que, de uma maneira ou de outra, lidar com a declividade de 45º do terreno. Uma casa térrea implicaria em grandes movimentações de terra e risco de deslizamento, bem como a construção de um poderoso muro de arrimo para conter toda a terra da encosta. Dito isso, a verticalização do programa de necessidades é praticamente um condicionante obrigatório. O jeito como solo e edifício se encontram, teria que acontecer de maneira mais suave, por meio de poucos pontos de apoio, interferindo da menor forma possível na topografia original, facilitando execução, ventilação e fluxo de resíduos em dias de precipitação.


planta pavimento térreo

         Apenas dois pilares estruturam o volume principal formado pelas lajes retangulares. Uma pequena escavação resulta no abrigo de automóveis e acesso da residência, que se dá por uma escada de apenas um lance. O restante do terreno permanece intocado, sendo o edifício apenas "roçado" pela vegetação da área.

planta 1º pavimento

         Os cômodos se organizam de maneira linear, com eixos de circulação e usos bem definidos próximos aos dois pilares (ora aparentes, no meio da sala, ora ocultos, dentro de sanitários). Nesse primeiro pavimento estão living, copa e lavabo juntos, sem paredes que os separem, marcados apenas pelos diferentes mobiliários que os servem. A copa e lavabo se posicionam de maneira similar à utilizada por Mies van der Rohe na Casa Farnsworth.
         Aberturas acontecem a norte e sul, do piso ao teto, assim como a oeste (voltado ao terreno). A leste, uma abertura de fora a fora acontece como um rodapé, exaltando a leveza da estrutura: quem olha da rua, enxerga os pés das pessoas e o pé da montanha, atravessando com o olhar toda a residência.

planta 2º pavimento

planta 3º pavimento

         Os dois pavimentos seguintes possuem distribuição parecida, com um cômodo de uso comum frente à escada (que marca um eixo vertical de circulação) e dormitórios nos extremos das lajes. A exceção é a cozinha no 3º pavimento, seguida de uma lavanderia.
         O 2º pavimento é o mais fechado da casa, com aberturas apenas a norte e sul, com uma faixa separando escadas e home a oeste. No pavimento acima, uma grande abertura leva o sol da manhã para a sala de jantar.
         Um volume anexo, que poderia ser construído posteriormente, foi proposto transversalmente ao volume principal, expandindo o uso da sala de jantar para uma sala de tv. Tal cômodo seria executado em estrutura de madeira, apoiado na estrutura de concreto armado da casa e diretamente no terreno por meio de duas vigas.

corte transversal

corte longitudinal

cobertura

         Na cobertura, cujo acesso se dá por uma escada também descoberta, uma piscina ocupa o grande vão entre duas vigas transversais, enquanto a cobertura da sala anexa funciona como um solário. A área de lazer transferida para a cobertura propicia vistas deslumbrantes de Mangabeiras e BH, gerando áreas de uso considerável em locais geralmente ignorados em projeto.


         O projeto da Casa em Mangabeiras parou no anteprojeto. Até que cliente e escritório digam o contrário, a casa nunca será construída. Será? Será que já não está construída, apenas não no que chamamos de "real"?
         Através de uma distribuição ousada, fruto de um desejo de ocupação ousado (afinal, por que quer o ser humano ocupar terreno cuja natureza é fazer com que tudo role ladeira abaixo?) o grupoSP nos apresenta um projeto que é puro exercício de racionalidade e poesia.
         Tal como na semente de Lévy, esses desenhos e representações guardam virtualmente em si fortes idéias, que se ainda não podem romper sua casca e esgalhar nesse projeto, o farão em um próximo.



LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo, Editora 34, 1996.
Todas as imagens e desenhos da Casa em Mangabeiras são propriedade do grupoSP, e podem ser acessadas (juntamente com mais conteúdo) no link: http://www.gruposp.arq.br/?p=846

Comentários

  1. Baita texto, mas vou deixar uma provocação: vocês acham que a "ousadia" estrutural se justifica ou é tipo os gurizinhos de colégio com aquele papo "minha mãe é mais bonita que a tua... o carro do meu pai é mais legal do que o do teu... meu balanço é maior que o teu..." ?

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  2. Resposta difícil para sua pergunta Luciano. No próprio caso usado como exemplo no texto, da Casa em Mangabeiras, é fato de que não precisavam ser dois pilares apenas. Poderiam ser 3, 4... Se rola uma competição entre, por exemplo, o Alvaro Puntoni e o Angelo Bucci pra ver quem projeta a casa com menos apoios, nunca vamos saber haha.
    Mas com certeza, na arquitetura há uma competição intelectual desde as magníficas soluções estruturais dos romanos até Dubai!
    Quando a estrutura é "ousada" para se adaptar a situações ousadas (ocupar um terreno com 45º de inclinação, por exemplo) achamos justificável.
    Agora, estripulias estruturais, pelo simples prazer da estripulia...só é justificável para egos... Mas que são bonitas de se ver ao vivo...isso o são.
    A exceção é quando alimenta egos...mas também é uma afirmação. Basta pensar na Torre Eiffel.

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  3. Pois é, o que me incomoda é quando visivelmente o arquiteto quis aparecer.... olha só, imagina uma laje com apenas dois apoios centrais, é necessário um reforço tão grande devido aos esforços de torção que se faz quase um aço à milanesa... mas daí tem a justificativa de não movimentar o terreno.... ok, e qual o tamanho de cada sapata para concentrar toda a carga da casa em apenas dois pontos? calculem quantos m3 de terra precisam ser removidos... enfim, estruturas ousadas são legais... mas por simples "o meu é maior que o teu" eu acho uma grande bobagem.

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