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O legado silencioso de heróis [02]: Joaquim Guedes e a Casa Waldo Perseu


         Dentre os diversos projetos de residências surgidos nos anos de 1960 em São Paulo, destacam-se aqueles projetados pelo escritório do arquiteto Joaquim Guedes. O que chama a atenção é a permanente e progressiva experimentação e inter-relação entre os projetos de diferentes programas, hora com guinadas conceituais opostas, hora com insistente repetição no estudo dos detalhes construtivos.
         Para Guedes, o arquiteto, antes de mais nada, deve saber construir. É por meio desse conhecimento que tem fruto seus partidos projetuais, por vezes sendo sua arquitetura considerada vanguardista em apresentar técnicas de muita difusão na arquitetura brasileira (suas experiências com o concreto armado aparente e panos de vidro sem caixilho, encaixados diretamente no concreto, são apenas dois exemplos do fato).
         Guedes envolveu-se com diversos projetos públicos, sendo responsável por projetos como o do Conjunto Habitacional Padre Manoel da Nóbrega (1974) e do plano para a cidade de Caraíba, Bahia (1978).
         Conhecido por seu temperamento e idéias radicais, defendia seu ponto de vista com afinco. Em paralelo ao escritório de arquitetura, deu aulas na FAUUSP por muito anos, foi presidente do IAB-SP (em um período cercado de polêmicas), e chegou a concorrer a vereador. Faleceu em 2008, ao final de uma tarde, vítima de um atropelamento em São Paulo, próximo de seu escritório. Seu radicalismo e recusa do formalismo resultaram em projetos fantásticos, arquivados em poucos livros e revistas. Seu legado, embora um pouco mais silencioso do que deveria ser, é poderoso, e desafia ainda hoje o status quo e ideário de nossa arquitetura.

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Post 02:

Residência Waldo Perseu Pereira (1967-1969)
[Joaquim Guedes]


         Situada em um lote triangular no bairro do Pacaembú, mesmo depois de diversas reformas realizadas ao longo dos anos (que acabaram por descaracteriza-la um bocado), essa residência projetada por Joaquim Guedes no fim da década de 1960 ainda se impõe por sua volumetria complexa e latente experimentação.



         O terreno com acesso a duas ruas, seu desnível de 5 metros e a visada principal voltada para noroeste acabaram por definir a volumetria que abriga o extenso programa da residência. Por conta da alta incidência solar que a fachada voltada ao jardim receberia, Guedes previu brises verticais nos pavimentos mais altos. No térreo, um bonito paisagismo projetado por Liliana Guedes (esposa do arquiteto à época) tem a função de qualificar os espaços livres e impedir que a luz do sol chegue muito poderosamente aos panos de vidro sem caixilho. Por vezes, a vegetação chega a tocar o vidro, contribuindo também para que a ventilação natural ganhe mais frescor.





         O sistema construtivo da residência é uma evolução do tema que Joaquim Guedes vinha pesquisando naquele momento, com uma materialidade simples, baseada na estrutura robusta de concreto armado, panos de vidro sem caixilho (com montantes direto no próprio concreto) e fechamentos de tijolo cerâmico.*
         Os materiais acabam por criar espaços abertos, cujo uso pode ser definido pelo arranjo do mobiliário. Em contraponto à liberdade espacial, cada volume é pensado de maneira racional, como pode ser observado na sobreposição das plantas dos três pavimentos. Sempre preocupado com a construção e os métodos necessários para chegar ao processo, Guedes era famoso por pensar nas dimensões de seus edifícios de acordo com a multiplicação da área quadrada de telhas, painéis e blocos.




         Enquanto o segundo pavimento abriga o restante do programa, digamos assim, mais íntimo, o terceiro pavimento era um apartamento completo (onde o pai e genro do casal viveria). Uma reforma em 1978, administrada pelo arquiteto Siegbert Zenettini, acabaria por redefinir alguns usos para os ambientes, criando mais quartos e banheiros.
         Vista da rua a sudeste, se tem a impressão da casa ser térrea, com um volume simples e garagem limítrofe ao recuo direito, estética similar à Villa Tugendhat de Mies van der Rohe. No entanto, ao se adentrar a residência, descer seus três níveis e chegar ao jardim, algumas surpresas são reveladas, como o ângulo formado pelo encontro de dois panos de vidro. A esquina de vidro, cuidadosamente localizada de maneira a trazer luz ao estúdio no térreo e dormitório no andar superior, deixa de ser portanto apenas um fechamento, para tornar-se também volume, um sólido translúcido.





         A influência de arquitetos como Corbusier, Aalto e Artigas na obra de Guedes, seja no desenvolvimento de idéias similares ou no contraponto dessas, é marcante. O arquiteto parece tomar as lições aprendidas com obras como da Casa Baeta de Artigas, e pontuar aberturas (ora com panos de vidro, ora com rasgos "zigzaguedos") apenas onde é necessário.
         Com poucos materiais, precisão e coerência, Joaquim Guedes projeta diversas residências e edifícios de variados programas, incluindo-os todos em suas experiências construtivas. A Casa Waldo Perseu está entre uns de seus trabalhos mais fantásticos, onde um merecido estudo e divulgação ainda deveriam ganhar maior enfoque e luz.



> A maioria das imagens presentes nessa postagem foram retiradas do arquivo .pdf da dissertação de mestrado de Pablo Luhers Graça, intitulada "As Casas de Joaquim Guedes: 1957 - 1978". As plantas tiveram suas legendas modificadas pelos autores desse blog, com o intuito de melhorar a qualidade de visualização. As imagens foram escaneadas por Pablo Luhers de revistas e livros, como consta em sua bilbiografia. O magnífico trabalho pode ser lido e baixado clicando-se aqui.
> Outra imagens e informações podem ser encontrados nos seguintes links:

> ACAYABA, Marlene Milan. Residência Waldo Perseu Pereira (1967-1969). In:Residências em São Paulo: 1947-1975. São Paulo: Romano Guerra Editora, 2011.

* A residência passou por diversas reformas que a mudaram bastante, embora sua divisão programática e volumes marcantes tenham se mantido. Hoje o brutalismo da fachada se perdeu, sendo o bonito concreto aparente recoberto com revestimento branco e pedra. Duas fotografias recentes, tiradas por Thalita Teixeira Ambrogi, podem ser vistas no site Arquitetura Brutalista, juntamente com algumas outras informações, clicando-se aqui.


Não deixe de ler também o primeiro post dessa série, clicando no link abaixo:
O legado silencioso de heróis [01]: Paulo Bastos e a Casa em Pinheiros

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